quinta-feira, 20 de setembro de 2007

Trabalho à margem da lei

Governo Federal repassa verba de forma irregular para ONGs.
Governo contrariou a LDO ao repassar, desde 2003, R$ 17 milhões para ONGs, sindicatos, centrais sindicais e para o Senai.
Para quem foi o dinheiro? Veja a relação das entidades não-governamentais que receberam recursos do Ministério do Trabalho ao arrepio da LDO.



Veja lista por entidade e por convênio

Lúcio Lambranho

Levantamento exclusivo ao qual o Congresso em Foco teve acesso revela que o governo federal repassou, de forma irregular, mais de R$ 17 milhões para organizações não-governamentais (ONGs), entidades privadas sem fins lucrativos, sindicatos, centrais sindicais e ao Senai, braço de educação profissional da Confederação Nacional da Indústria (CNI), nos últimos quatro anos.

Os repasses saíram do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) entre o início de 2003 e o último dia 30 de agosto. De acordo com o consultor de orçamento da Câmara Leonardo Rolim, responsável pelo acompanhamento da pasta, a liberação desses recursos para 45 entidades, por meio de 110 convênios firmados pelo governo federal, contraria a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO).

Todas as liberações para as 45 entidades citadas no levantamento são de investimento e só poderiam ter sido executadas, segundo a legislação orçamentária, por organizações da sociedade civil de interesse público (oscips) devidamente registradas no Ministério da Justiça (MJ).
Criadas por meio da Lei 9.790, de 1999, mais conhecida como Lei do Terceiro Setor, as oscips são entidades que conseguiram o reconhecimento oficial após cumprirem uma série de requisitos de transparência administrativa exigidos pelo MJ.

Principais beneficiados

Organizado em todo o país e com tradição em educação profissional, o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai) recebeu a maior fatia dos recursos de investimento do MTE entre todas as entidades, R$ 3,8 milhões (22,03%). Mesmo tendo firmado convênio há nove meses com o governo, o Senai informa que ainda aguarda uma definição do ministério para iniciar as atividades enquanto o dinheiro continua parado numa conta bancária.
Em segundo lugar, no valor total de repasses, está a ONG baiana Avante Qualidade, Educação e Vida com R$ 952.632,00 (5,52%). A entidade cometeu irregularidades, segundo auditoria do Tribunal de Contas da União (TCU), em um dos oito convênios com o MTE e em outro com a Controladoria-Geral da União (CGU) – exatamente o órgão responsável pela fiscalização e transparência na liberação de recursos federais.

Ao ser questionado pelo site, o ministro da CGU, Jorge Hage, não escondeu sua preferência pela ONG, coordenada por seus conterrâneos e ex-colegas de universidade. "A escolha da Avante se deu justamente por contar com uma equipe oriunda da Universidade Federal da Bahia, onde ele também atuou e trabalhou", diz o comunicado enviado a este site pela assessoria do ministro.
A maior parte das entidades beneficiadas atuou como âncora do programa Primeiro Emprego, projeto do governo federal que pretendia qualificar e facilitar a entrada de jovens no mercado de trabalho. O programa foi extinto no início deste mês pelo presidente Lula e unificado com outras ações da área no Projovem.

Prática intolerável

Oficialmente, o TCU só se pronunciará sobre os repasses da modalidade investimento do MTE por meio de um novo acórdão, informou a assessoria de imprensa do tribunal. Mas, informalmente, um dos auditores do tribunal confirmou que a avaliação do consultor da Câmara está correta. De acordo com ele, as liberações de investimento do ministério ainda não foram investigadas.
A reportagem também tentou entrevista com o ministro do TCU Marcos Bemquerer, que relatou o processo que encontrou irregularidades nas duas ONGs acima citadas. Por meio de sua assessoria, o ministro disse que "não seria a pessoa mais qualificada para falar sobre o assunto".

Mas no voto apresentado no dia 8 de novembro do ano passado, em que apontou irregularidade em contratos de nove ONGs com o governo federal, Bemquerer não poupou palavras para criticar a falta de critérios, na administração pública, para a escolha dessas entidades e condenou a resistência das organizações não-governamentais a se tornarem oscips:
"Hoje o que se vê é intolerável. Tudo leva a crer que a maioria esmagadora das ONGs evita qualificar-se como oscip para poder continuar a beneficiar-se do inaceitável mecanismo, que hoje prevalece, pelo qual o poder público distribui recursos a essas organizações por meio de convênios, sem recorrer a edital público para selecionar os melhores projetos. Em função de uma duvidosa concepção doutrinária do Direito brasileiro, dá-se uma espécie de ‘ação entre amigos’".Turismo sob investigação

Caso semelhante sobre repasses irregulares para ONGs foi revelado pelo Congresso em Foco, em maio deste ano. Após a reportagem, o ministro Ubiratan Aguiar abriu investigação sobre as liberações do Ministério do Turismo (MTur) para entidades vedadas pela Lei de Diretrizes Orçamentárias.
O ex-ministro do Turismo Walfrido dos Mares Guia (PTB-MG), atual titular da Secretaria de Relações Institucionais, transferiu mais de R$ 24 milhões a entidades privadas sem fins lucrativos, igrejas e sindicatos rurais entre 2003 e 2006. O caso está sob análise dos técnicos da 5ª Câmara de Controle Externo do TCU. O MTur já foi convocado para prestar esclarecimentos.

No caso do dinheiro liberado pelo Ministério do Trabalho, novamente, o problema maior está no fato de os repasses contrariarem a LDO, conforme atesta Leonardo Rolim, consultor de orçamento da Câmara nas áreas de trabalho, previdência e assistência social. As transferências voluntárias realizadas por intermédio de convênios, explica o consultor, são divididas em três modalidades: subvenções sociais, auxílios e contribuições.As contribuições são a modalidade que o MTE mais utiliza em seus convênios com as ONGs. Mas, desde 30 de junho de 2003, quando entrou em vigor a LDO 2004, é vedado o repasse de investimento (tecnicamente chamado de contribuição de capital) que não estiver previsto em lei específica. E como o MTE não tem lei específica que autorize investimentos para ONGs, esse ministério apenas poderia repassar recursos de investimentos na modalidade auxílios, e exclusivamente para oscips.

Crime de responsabilidade

"Portanto, todos os convênios do MTE com entidades privadas que não sejam oscips, firmados a partir de 30 de junho de 2003, e que tenham uma parcela de investimentos, ainda que pequena, são ilegais", explica Leonardo Rolim.
O consultor alerta ainda que os ex-ministros do Trabalho Jaques Wagner, Ricardo Berzoini e Luiz Marinho, correm o risco de serem denunciados pelo Ministério Público Federal (MPF) por crime de responsabilidade por terem repassado R$ 17 milhões a ONGs ao arrepio da LDO.

"A Lei nº 1.579/50, no seu artigo 10, inciso 12, estabelece como crime de responsabilidade realizar ou receber transferência voluntária em desacordo com limite ou condição estabelecida em lei", adverte o consultor da Câmara.

Movimento sindical

Além da CUT e da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), tradicionais aliadas do governo, o Congresso em Foco também identificou outras entidades ligadas a sindicatos, como a Força Sindical, a Cooperativa de Consumo dos Empregados da Volkswagen do Brasil e a Agência de Desenvolvimento Econômico do Grande ABC, entre as beneficiadas pelos repasses do Ministério do Trabalho.

Também figura na lista uma ONG investigada pela Procuradoria Geral da República e o TCU: a Associação de Projetos de Combate à Fome (Ágora). Na Procuradoria Geral da República no Distrito Federal (PRDF), a Ágora responde por três procedimentos administrativos.

O primeiro procedimento, aberto em 2000, já foi remetido para investigações da Polícia Federal (PF) e outros dois estão relacionados à suposta prática de improbidade administrativa justamente sobre a execução de recursos do Programa Primeiro Emprego. Pela lista de repasses irregulares, a Ágora recebeu R$ 335.854,00 de investimento do MTE (leia as justificativas da CGU e das entidades para os repasses).
O especialista em orçamento Leonardo Rolim não aceita o argumento do governo de que fez esses convênios para conseguir beneficiar o maior número de jovens no Primeiro Emprego. "A abrangência parece que atende apenas a interesses políticos", acredita Rolim.

Distorção no Primeiro Emprego

"O repasse de recursos para entidades sem qualificação é um absurdo, uma vergonha nacional", avalia o diretor de Parcerias do Instituto Ethos, Caio Magri. Segundo ele, o Ethos sugeriu ao governo, antes mesmo da criação do programa Primeiro Emprego, a unificação de ações para geração de emprego e renda para os jovens. "O governo foi lento com a Lei do Aprendiz, aprovada em 2000 e só regulamentada em 2005", avalia.

A Lei do Aprendiz prevê que as empresas precisam ter em seu quadro de funcionários no mínimo 5% e, no máximo, 15% de jovens aprendizes contratados para funções que exijam qualificação profissional.
Magri afirma que o público-alvo seria de 800 mil a 1,5 milhão de jovens, mas, segundo os dados do MTE de 2005, apenas 56 mil haviam sido atendidos em políticas de trabalho e emprego.

"Pela Lei do Aprendiz, os conselhos municipais de criança e do adolescente decidiam quais entidades poderiam fazer a qualificação dos jovens. Quem fez essa seleção no Primeiro Emprego é que tem que ser responsabilizado pelos desvios", diz. "Há também uma distorção da função dos sindicatos e centrais sindicais, que foram cooptados pelo governo para resolver o problema da qualificação e do emprego. Isso é inacreditável", completa o diretor do Ethos.
Briga interna

O Ministério da Educação tentou levar parte dos recursos do FAT, fonte da maior parte dos repasses de investimento, para sua gestão, mas sofreu forte resistência, ainda no início do governo Lula. Em 2006, a oposição tentou passar parte dos recursos do FAT para o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação Básica (Fundeb).

Mas o governo não aceitou a emenda incorporada à PEC do Fundeb pelo senador Tasso Jereissati (PSDB-CE). Como foi publicado, o mais notório opositor à mudança foi o então ministro do Trabalho, Luiz Marinho, ex-presidente da Central Única dos Trabalhadores (CUT) e que hoje está à frente do Ministério da Previdência.

Inicialmente favorável à injeção dos recursos do FAT no Fundeb, a relatora da PEC, deputada Iara Bernardi (PT-SP), decidiu descartá-la depois de ouvir os apelos feitos por Marinho. "Não quero criar nenhum empecilho para a aprovação da PEC", disse na época a relatora.

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