
– Molhada e escorregadia, é a resposta. O comandante repete a informação em voz alta. A torre confirma as condições meio minuto depois. Todos os procedimentos de pouso seguem então o roteiro de um vôo normal.
– Pousando sem azul, diz o piloto.
Com isso, ele revela que o trem de pouso está baixado e travado. A pouco mais de 6 metros do chão, o computador de bordo dá o alerta para desacelerar: “retard”. O aviso é corriqueiro numa aterrissagem. À medida que se aproxima do solo, a aeronave precisa perder velocidade. Segundo a transcrição dos sons da cabine, registrados por uma das caixas-pretas do avião, o comandante age de acordo com o esperado. Ao ouvir o segundo aviso “retard”, desloca as alavancas que funcionam como acelerador dos motores do avião – conhecidas como manetes – para reduzir a velocidade. O ruído do movimento das manetes também é captado pelos microfones que fazem o registro sonoro. Sentado na cabine do A-320, o piloto precisa fazer poucos movimentos para pousar. Com uma das mãos, puxa as manetes no centro do console. Com a outra, move um joystick, comando manual que substitui o manche, para acertar a mira da aeronave na pista. Os freios – nas rodas e nas asas – começam a funcionar automaticamente assim que o avião toca o solo. Os pedais também servem para, quando necessário, controlar os freios nas rodas e para virar o avião para a direita e para a esquerda.
O comandante Kleyber Aguiar Lima, de 54 anos, conhecia bem essa rotina. Com 27 anos de profissão, mais de 13 mil horas de vôo, pilotava o A-320 havia cinco anos. Pousara em Congonhas centenas de vezes. Estava em uma fase ascendente da carreira. No dia 13 de julho, fora promovido ao cargo de comandante master da TAM. A partir de agosto, passaria a fazer apenas rotas internacionais. Nascido em Rondônia, Kleyber foi levado pela família para o Ceará com 3 anos de idade. Solteiro e sem filhos, vivia em São Paulo. Sempre que podia, passava as folgas em Fortaleza, com os parentes. A decisão de ser piloto foi influenciada pelo pai, Haroldo, radiotelegrafista da Vasp. “Quando tinha uns 9 anos, ele já falava que queria voar. Ele era apaixonado pela profissão”, diz a irmã Sheila, de 51 anos. Até as brincadeiras de infância tinham relação com o céu. As preferidas eram empinar pipa e soltar fogos de artifício no quintal de casa.
Na cabine de comando, ao lado de Lima, está Henrique Stephanini Di Sacco, de 54 anos. Filho de piloto, durante a infância e adolescência Di Sacco acompanhava o pai, Raphael, nas viagens pelo interior de São Paulo. Aos 18 anos, passou no vestibular para Biologia e mudou-se de São Paulo para estudar em Bragança Paulista. A atração por aviões era mais forte. Em vez de ir à aula, freqüentava o aeroclube ao lado da faculdade. Em pouco tempo conseguiu o primeiro emprego como piloto de avião executivo. Casado com a empresária Maria Helena, pai de três filhos, Di Sacco era considerado pelos amigos e familiares uma pessoa atenta a todos os detalhes da profissão. Os manuais de aviação costumavam ser seus livros de cabeceira. “Sei quanto ele exigia de si mesmo”, diz Maria Helena. A experiência conquistada na Transbrasil, onde trabalhara por 22 anos, Di Sacco levou para a TAM. Há seis meses na companhia, Di Sacco se dizia satisfeito. E seria avô em breve. A nora Carolina, casada com o filho Fábio, está grávida de Sofia, cujo nascimento está previsto para setembro. “Ele estava numa fase excelente, estava radiante”, diz Maria Helena.


ELES TAMBÉM SÃO VÍTIMAS
Na foto no alto, Di Sacco (segurando o cão Mike) com a mulher, os três filhos e a nora (de vestido, grávida), num almoço de domingo em São Paulo. Abaixo, Kleyber (de óculos) com a mãe e os irmãos, durante visita do piloto à família em Fortaleza
1) O piloto cometeu um erro primário ao deslocar apenas uma manete para a posição exigida para o pouso, mantendo a outra em posição de aceleração. Essa era a hipótese mais comentada na semana passada.
2) Algum sistema de controle do avião falhou e interpretou a intenção do piloto como uma ordem de decolagem.
Sem obedecer ao comando do piloto para reduzir a força no motor direito, a aeronave continuou acelerando automaticamente e cancelou alguns dos procedimentos programados para a aterrissagem.
Ambas as hipóteses são plausíveis, segundo revelam as duas caixas-pretas do avião. A que grava os diálogos é mais compreensível para o leigo em aviação. Ela revela o clima na cabine até a tragédia. A outra caixa-preta registra os comandos do vôo. Estão ali dados como velocidade, altitude e a posição de cada equipamento do avião, do trem de pouso às manetes, num total de 580 parâmetros. É ela a caixa-preta mais importante para os investigadores da Aeronáutica.
Eles escolheram 60 desses parâmetros para reconstituir os minutos finais do vôo 3054. Se forem insuficientes, novos dados serão usados. Até agora, os investigadores sabem que a caixa-preta registrou duas posições diferentes para as manetes na hora da aterrissagem, quando ambas deveriam estar em ponto morto (idle). Uma delas foi registrada na posição de aceleração (climb). Visualmente, a distância entre as duas posições é grande. Trata-se de um erro tão grosseiro em aviação, segundo os pilotos consultados por ÉPOCA, que não há qualquer dispositivo de segurança que impeça um piloto de cometê-lo. “É instintivo, as manetes são operadas juntas e colocadas em ponto morto”, diz um piloto de Airbus.
Há três anos, um Airbus A-320 sofreu um acidente parecido em Taiwan. Os pilotos disseram que não conseguiram frear. A caixa-preta de voz registrou um deles dizendo: “Sem freios, sem freios, sem freio nenhum”. A investigação concluiu que o piloto não puxou a manete direita para a posição de ponto morto. Ele estava num ângulo ainda suficiente para dar aceleração ao motor. Isso impediu o funcionamento automático do sistema de freios. O avião saiu pela esquerda da pista e parou numa vala, sem ferir ninguém. Independentemente das especulações que cercam o vôo 3054, esse caso mostra que um fator foi decisivo para a tragédia: o comprimento da pista de Congonhas. Se houvesse área de escape no aeroporto, como em Taiwan, as mortes poderiam ter sido evitadas. Para além dessa certeza, ainda pairam muitas dúvidas sobre o desastre:
- O erro foi dos pilotos ou o software do avião interpretou de modo confuso a posição das alavancas?
- A posição das manetes no momento do pouso era realmente a gravada na caixa-preta?
- Se os pilotos erraram, o que os levou a cometer um erro tão grosseiro? A tripulação estava descansada e preparada para situações de emergência?
- A manutenção da aeronave falhou?
- O fato de a pista estar molhada e escorregadia deixou os pilotos mais preocupados que o normal?
- A pista curta demais não deixou tempo para eles tomarem decisões certas?
- Os freios manuais não funcionaram?
- Houve falha no software que controla o sistema de frenagem do avião?
- A aeronave estava pesada demais?
-Se algum software do avião tinha falhas, por que elas não haviam sido percebidas antes?
Apenas os dados das caixas-pretas são insuficientes para concluir o que realmente aconteceu. Por mais informação que contenham, elas não trarão respostas para todas as perguntas. Os investigadores contam com registros históricos de manutenção, com dados da torre de comando e com a inspeção dos destroços e do local para tentar decifrar as causas da tragédia.
‘‘Kleyber era muito responsável e minucioso. Falava com a tripulação e checava o avião antes de cada vôo’’SHEILA LIMA, irmã do comandante.
Às 18h48m26s, o trem de pouso do Airbus prefixo PR-MBK, que partira de Porto Alegre, toca o solo em Congonhas. É a partir daí que deveria entrar em funcionamento o sistema automático de freios. Parar um A-320 requer a ação conjunta do motor, das asas e das rodas. No motor, um dispositivo – conhecido como reversor – inverte o fluxo do ar que passa pela turbina e ajuda a desacelerar a aeronave em solo. Para acionar o reversor, o piloto desloca a manete da posição de ponto morto (idle) para a posição de reverso (reverse). Nas asas, há freios aerodinâmicos, chamados spoilers, acionados automaticamente assim que os pneus tocam a pista. Eles são cinco superfícies que se abrem sobre cada asa para aumentar a resistência ao ar e empurrar o avião contra o solo. Sem os spoilers, o piloto só consegue parar o avião se estiver em condições favoráveis: numa pista longa e com pouco peso a bordo. Na roda, os freios também são acionados automaticamente, por um sistema conhecido como “autobrake”. Se o piloto sentir necessidade de frear de modo mais brusco, pode pisar nos pedais na cabine.
No vôo 3054, há uma particularidade: apenas um reversor está funcionando. O dispositivo fora travado dias antes por mecânicos da TAM no aeroporto de Confins, Minas Gerais. Trata-se de um procedimento recomendado pelo manual de segurança da Airbus, que permite o funcionamento da aeronave por até dez dias sem que um reversor esteja funcionando. Às 18h48m26, assim s que o avião toca a pista de Congonhas, o co-piloto diz: “Reversor número um apenas”. Três segundos depois, ele mesmo constata: “Nada de spoilers”. Era a constatação de que algo de errado acontecera e o avião não frearia como de costume.



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